Cardeal Orani: a nova encíclica social “Fratelli tutti” (III)

Possam estas reflexões do Santo Padre levar-nos a repensar, à luz do Evangelho, nossa relação com todos os que passam por nós no dia a dia.
06/10/2020 10:10
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Cardeal Orani: a nova encíclica social “Fratelli tutti” (III)

Cardeal Orani João Tempesta, O. Cist. - Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ - Vatican News

Reflitamos sobre os capítulos 3 e 4 da nova encíclica “Fratelli tutti”: a fraternidade e a amizade social, do Papa Francisco. Espero despertar em cada um o gosto pela leitura integral desse precioso documento.

Recordo, a título de contextualização, que no capítulo I, intitulado “As sombras de um mundo fechado” (n. 9-55), o Santo Padre expôs algumas tendências do mundo atual que atrapalham ou mesmo impedem a fraternidade universal. Deixou de lado, por um tempo, esses questionamentos para iluminar sua reflexão com a parábola do Bom Samaritano (cf. Lc 10, 25-37). Eis que, agora, no capítulo III, cujo título é “Pensar e gerar um mundo aberto” (n. 87-127), o Papa como que se volta para as respostas aos desafios por ele recolhidos no capítulo II. Acompanhemos com atenção.

É preciso amar de verdade e concretamente, diz o Papa: “O ser humano está feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude ‘a não ser no sincero dom de si mesmo’ (Gaudium et spes, 24) aos outros. E não chega a reconhecer completamente a sua própria verdade, senão no encontro com os outros: ‘Só comunico realmente comigo mesmo, na medida em que comunico com o outro’ (Gabriel Marcel, Du refus à l’invocation (Paris 1940), 50). Isso explica por que ninguém pode experimentar o valor de viver, sem rostos concretos a quem amar. Aqui está um segredo da existência humana autêntica, já que ‘a vida subsiste onde há vínculo, comunhão, fraternidade; e é uma vida mais forte do que a morte, quando se constrói sobre verdadeiras relações e vínculos de fidelidade. Pelo contrário, não há vida quando se tem a pretensão de pertencer apenas a si mesmo e de viver como ilhas: nestas atitudes prevalece a morte’ (Francisco, Alocução do Angelus (10 de novembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 12/XI/2019), 3)” (n. 87). Aliás, a) “o individualismo não nos torna mais livres, mais iguais, mais irmãos. A mera soma dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a humanidade” (n. 105) b) mesmo na defesa da verdade, devemos agir com amor, pois “o maior perigo é não amar (cf. 1Cor 13,1-13)” (n. 92).

O que foge disso tudo está, via de regra, mais voltado a si mesmo do que ao próximo e pode ser doentio: “A pessoa humana, com os seus direitos inalienáveis, está naturalmente aberta a criar vínculos. Habita nela, radicalmente, o apelo a transcender-se a si mesma no encontro com os outros” (n. 111). Até mesmo em nível micro, nas comunidades, “os grupos fechados e os casais autorreferenciais, que se constituem como um ‘nós’ contraposto ao mundo inteiro, habitualmente são formas idealizadas de egoísmo e mera autoproteção” (n. 89). Ninguém deve se isolar, somos “todos irmãos (Mt 23,8)” (n. 95).  Aqui entra o racismo: “um vírus que muda facilmente e, em vez de desaparecer, dissimula-se, mas está sempre à espreita” (n. 97). Nesse contexto, quem ama os que com ele convivem numa comunidade local, deverá amar também os de mais longe: é assim o exercício da fraternidade universal (cf. n. 99-104). Sim, pois “todo ser humano tem direito de viver com dignidade e desenvolver-se integralmente, e nenhum país lhe pode negar este direito fundamental” (n. 107). Somos, portanto, chamados a dar o melhor aos outros na verdadeira solidariedade (cf. n. 112 e 114), sem nos esquecermos do cuidado para com a “casa comum”, conforme foi longamente tratado na Laudato Si, e com o uso correto da terra.

Sobre a terra, em especial, escreve o Pontífice: “Faço minhas e volto a propor a todos algumas palavras de São João Paulo II, cuja veemência talvez tenha passado despercebida: ‘Deus deu a terra a todo gênero humano, para que ela sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém’ (Centesimus annus (1 de maio de 1991), 31: AAS 83 (1991), 831). Nesta linha, lembro que ‘a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada’ (Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 93: AAS 107 (2015), 884). O princípio do uso comum dos bens criados para todos é o ‘primeiro princípio de toda a ordem ético-social’ (Carta enc. Laborem exercens (14 de setembro de 1981), 19: AAS 73 (1981), 626), é um direito natural, primordial e prioritário (cf. Conselho Pontifício «Justiça e paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 172). Todos os outros direitos sobre os bens necessários para a realização integral das pessoas, quaisquer que sejam eles incluindo o da propriedade privada, ‘não devem – como afirmava São Paulo VI – impedir, mas, pelo contrário, facilitar a sua realização’ (Populorum progressio (26 de março de 1967), 22: AAS 59 (1967), 268). O direito à propriedade privada só pode ser considerado como um direito natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados, e isto tem consequências muito concretas que se devem refletir no funcionamento da sociedade. Mas acontece muitas vezes que os direitos secundários se sobrepõem aos prioritários e primordiais, deixando-os sem relevância prática” (n. 120; cf. n. 124).

Francisco louva os empresários em seus esforços, porém também os desafia: “Mas estas capacidades dos empresários, que são um dom de Deus, deveriam em todo o caso orientar-se claramente para o desenvolvimento das outras pessoas e a superação da miséria, especialmente através da criação de oportunidades de trabalho diversificadas” (n. 123). Afinal, só ante uma lógica que considera a dignidade humana é possível sonhar com e ter um mundo melhor (cf. n. 123).

No capítulo IV, cujo título soa “Um coração aberto ao mundo inteiro” (n. 128-153), o Papa se volta, por primeiro a um problema que lhe é muito especial: o dos migrantes. Para o Santo Padre o ideal seria ninguém deixar a sua terra natal, mas se, forçado por algumas circunstâncias específicas, as pessoas tiverem de buscar outras regiões, que vigore para elas a fraternidade universal: onde quer que esteja ou vá, encontre irmãos e irmãs capazes de lhes aplicar concretamente quatro verbos: “acolher, proteger, promover e integrar” (n. 129). A quem já se encontra instalado em um lugar faz algum tempo, importa que lhe seja reconhecida a cidadania, ou seja, a pertença legal à população local (cf. n. 131); ele há de ser um dom para ela, pois sempre traz algo novo (cf. n. 133).

“As várias culturas, cuja riqueza se foi criando ao longo dos séculos, devem ser salvaguardadas para que o mundo não fique mais pobre. Isso, porém, sem deixar de as estimular a que permitam surgir de si mesmas algo de novo no encontro com outras realidades” (n. 134 e 148). Nesse cenário, “a ajuda mútua entre países acaba por beneficiar a todos” (n. 137), dado que “hoje nenhum Estado nacional isolado é capaz de garantir o bem comum da própria população” (n. 153). Isso tudo sem perder, é certo, a identidade local (cf. n. 142) à luz de intercâmbios sadios e enriquecedores (n. 144). Nessa perspectiva, não cabem os “narcisismos bairristas que não expressam um amor sadio pelo próprio povo e a sua cultura. Escondem um espírito fechado que, devido a uma certa insegurança e medo do outro, prefere criar muralhas defensivas para sua salvaguarda” (n. 146). Pensa, assim, o Santo Padre, junto com Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, no bom relacionamento entre o Ocidente e o Oriente (cf. n. 136).

Antes de prosseguir na leitura da Fratelli Tutti, desejo lembrar, a título pessoal, as palavras do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) sobre os muçulmanos, uma vez que a relação entre o Ocidente e o Oriente envolve Cristianismo e Islamismo: “A Igreja olha também com estima para os muçulmanos. Adoram eles o Deus Único, vivo e subsistente, misericordioso e omnipotente, criador do céu e da terra, que falou aos homens e a cujos decretos, mesmo ocultos, procuram submeter-se de todo o coração, como a Deus se submeteu Abraão, que a fé islâmica de bom grado evoca. Embora sem o reconhecerem como Deus, veneram Jesus como profeta, e honram Maria, sua mãe virginal, à qual por vezes invocam devotamente. Esperam pelo dia do juízo, no qual Deus remunerará todos os homens, uma vez ressuscitados. Têm, por isso, em apreço a vida moral e prestam culto a Deus, sobretudo com a oração, a esmola e o jejum. E se é verdade que, no decurso dos séculos, surgiram entre cristãos e muçulmanos não poucas discórdias e ódios, este sagrado Concílio exorta todos a que, esquecendo o passado, sinceramente se exercitem na compreensão mútua e juntos defendam e promovam a justiça social, os bens morais e a paz e liberdade para todos os homens” (Nostra aetate n. 3). Neste ponto específico, como fonte de aprofundamento, indico uma obra que trata do Islamismo de modo sério: Religiões: respostas para as perguntas do homem moderno. São Paulo: Mundo e missão, 1998, p. 73-95 (volume I).

Retornando à encíclica, vemos Francisco se volta para a gratuidade cristã que é, em síntese, fazer o bem sem esperar nada em troca. Eis suas palavras sobre a gratuidade: “é a capacidade de fazer algumas coisas, pelo simples fato de serem boas, sem olhar êxitos nem esperar receber imediatamente algo em troca. Isto permite acolher o estrangeiro, mesmo que não traga de imediato benefícios palpáveis. Mas há países que pretendem receber apenas cientistas ou investidores. Quem não vive a gratuidade fraterna, transforma a sua existência num comércio cheio de ansiedade: está sempre a medir aquilo que dá e o que recebe em troca” (n. 139-140). É óbvio que “os nacionalismos fechados manifestam, em última análise, esta incapacidade de gratuidade, a errada persuasão de que podem desenvolver-se à margem da ruína dos outros e que, fechando-se aos demais, estarão mais protegidos. O migrante é visto como um usurpador, que nada oferece” (n. 141).

Daí afirmar o Papa sobre a interação social: “Esta abordagem exige, em última análise, que se aceite com alegria que nenhum povo, nenhuma cultura, nenhum indivíduo pode obter tudo de si mesmo. Os outros são, constitutivamente, necessários para a construção duma vida plena. A consciência do limite ou da exiguidade, longe de ser uma ameaça, torna-se a chave segundo a qual sonhar e elaborar um projeto comum. Com efeito, ‘o homem é o ser fronteiriço que não tem qualquer fronteira’ (Georg Simmel, Brücke und Tür. Essays des Philosophen zur Geschichte, Religion, Kunst und Gesellschaft (Estugarda 1957), 6)” (n. 150).

Possam estas reflexões do Santo Padre levar-nos a repensar, à luz do Evangelho, nossa relação com todos os que passam por nós no dia a dia. Peçamos a Deus a graça de sermos realmente acolhedores como manda o Evangelho (cf. Mt 25,35) e recomenda a Regra de São Bento (53,15) citada pelo Papa no número 90 da Fratelli Tutti.

Fonte: http://www.vaticannews.va/pt