Cardeal Orani: a nova Encíclica social “Fratelli tutti” (II)

Aprendamos, pois, a olhar os problemas de nosso tempo e a enfrentá-los por amor de Deus que é também amor ao próximo. Ambos são indissociáveis, pois ninguém consegue amar a Deus a quem não vê, se não ama o irmão a quem vê (cf. 1 Jo 4,20-21).
05/10/2020 09:10
19 minutos de leitura
Cardeal Orani: a nova Encíclica social “Fratelli tutti” (II)

Cardeal Orani João Tempesta, O. Cist. - Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ - Vatican News

A nova encíclica sobre a fraternidade e a amizade social, do Papa Francisco – que se inicia com as palavras de São Francisco de Assis: “Fratelli tutti”, em italiano, “Todos irmãos”, em português – foi publicada neste domingo: são oito densos capítulos.

No capítulo I, intitulado “As sombras de um mundo fechado” (n. 9-55), o Santo Padre expõe, sem pretender ser exaustivo, algumas tendências do mundo atual que atrapalham ou mesmo impedem a fraternidade universal. Eis suas palavras: “Sem pretender efetuar uma análise exaustiva nem tomar em consideração todos os aspetos da realidade que vivemos, proponho apenas manter-nos atentos a algumas tendências do mundo atual que dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal” (n. 9). E quais são essas sombras?

São muitas: as regressões na história que reacendem conflitos anacrônicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos, ideologias egoístas, nacionalistas e fechadas ao próximo (cf. n. 11 e 37); o mundo globalizado que se desinteressa pelo bem comum e, por isso, em vez de aproximar, afasta as pessoas. “O avanço deste globalismo favorece normalmente a identidade dos mais fortes que se protegem a si mesmos, mas procura dissolver as identidades das regiões mais frágeis e pobres, tornando-as mais vulneráveis e dependentes. Desta forma, a política torna-se cada vez mais frágil perante os poderes econômicos transnacionais que aplicam o lema ‘divide e reinarás’” (n. 12); parece reinar um “‘desconstrucionismo’, em que a liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero. De pé, deixa apenas a necessidade de consumir sem limites e a acentuação de muitas formas de individualismo sem conteúdo [...]. Para isso, precisam de jovens que desprezem a história, rejeitem a riqueza espiritual e humana que se foi transmitindo através das gerações, ignorem tudo quanto os precedeu” (n. 13); perde-se, assim, a identidade espiritual e social com seus grandes conceitos norteadores; semeia-se o desânimo e a polarização, especialmente no campo político. Nesse contexto, “a política deixou de ser um debate saudável sobre projetos a longo prazo para o desenvolvimento de todos e o bem comum, limitando-se a receitas efêmeras de marketing cujo recurso mais eficaz está na destruição do outro” (n. 15). Também os defensores do meio ambiente ou da “casa comum” são ridicularizados (cf. n. 17).

Ainda: a “cultura do descarte” é denunciada com ênfase: “no fundo, as pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar e tutelar, especialmente se são pobres ou deficientes, se ‘ainda não servem’ (como os nascituros) ou ‘já não servem’ (como os idosos). Tornamo-nos insensíveis a qualquer forma de desperdício, a começar pelo alimentar, que aparece entre os mais deploráveis. A falta de filhos, que provoca um envelhecimento da população, juntamente com o abandono dos idosos numa dolorosa solidão, exprimem implicitamente que tudo acaba conosco, que só contam os nossos interesses individuais” (n. 18-19). Não deixa o Papa de lembrar ainda os baixos salários a prejudicar os mais vulneráveis que por vezes prescindem do necessário para viver (cf. n. 20-21); os direitos humanos não são iguais para todos, as mulheres sofrem preconceitos e uma nova forma de escravidão atinge a não poucas pessoas em várias partes do mundo. Usam-se para se seduzir mulheres e crianças as redes sociais e desse tráfico de pessoas surgem gravidezes e, por conseguinte, abortos (cf. n. 23-24).

Temos ainda as guerras, os atentados, as perseguições por motivos raciais ou religiosos e tantas afrontas contra a dignidade humana; o etnocentrismo, ou seja, tudo o que vem do outro ou de um grupo diferente do meu é suspeito ou não aproveitável (cf. n. 25-27); nesse cenário, surge o crime organizado ou as máfias. São palavras do Papa: “A solidão, os medos e a insegurança de tantas pessoas que se sentem abandonadas pelo sistema, fazem com que se crie um terreno fértil para as máfias. Com efeito, estas impõem-se apresentando-se como ‘protetoras’ dos esquecidos, muitas vezes através de vários tipos de ajuda, enquanto perseguem os seus interesses criminosos” (n. 28 e 38). 

Há ainda uma obsessão pelo próprio bem-estar que os demais são esquecidos; apareceu também a Covid-19 que poderá ajudar a humanidade a repensar o seu futuro e trocar o exagero do “eu” pela grandeza do “nós” (cf. n. 31-35); no campo virtual, tem-se um paradoxo: as pessoas podem perder sua intimidade expondo-se, mas também há o isolamento de quem troca o virtual pelo real e é nas redes sociais que, quase sempre, surgem ofensas contra o próximo. É preciso romper essas barreiras e encontrar-se, de fato, com o outro na sadia convivência (cf. n. 42-50). O Santo Padre conclui o capítulo com uma mensagem alentadora: “Convido à esperança que ‘nos fala duma realidade que está enraizada no mais fundo do ser humano, independentemente das circunstâncias concretas e dos condicionamentos históricos em que vive. Fala-nos duma sede, duma aspiração, dum anseio de plenitude, de vida bem-sucedida, de querer agarrar o que é grande, o que enche o coração e eleva o espírito para coisas grandes, como a verdade, a bondade e a beleza, a justiça e o amor. (…) A esperança é ousada, sabe olhar para além das comodidades pessoais, das pequenas seguranças e compensações que reduzem o horizonte, para se abrir aos grandes ideais que tornam a vida mais bela e digna’ (Discurso no encontro com os jovens do Centro Cultural Padre Félix Varela (Havana – Cuba 20 de setembro de 2015): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 24/IX/2015), 9.). Caminhemos na esperança!” (n. 55).

No capítulo II, intitulado “Um estranho no caminho” (n. 56-86), o Papa Francisco deixa – como ele mesmo afirma – as respostas às questões levantadas no capítulo I para refletir sobre a conhecida parábola do Bom Samaritano (cf. Lc 10, 25-37). Eis as palavras do Sumo Pontífice: “Com a intenção de procurar uma luz no meio do que estamos a viver e antes de propor algumas linhas de ação, quero dedicar um capítulo a uma parábola narrada por Jesus Cristo há dois mil anos. Com efeito, apesar desta encíclica se dirigir a todas as pessoas de boa vontade, independentemente das suas convicções religiosas, a parábola em questão é expressa de tal maneira que qualquer um de nós pode deixar-se interpelar por ela” (n. 56). Em se tratando de um texto bíblico apto a despertar profundas reflexões, convido a cada um(a) a lê-lo e meditá-lo com vagar e, em seguida, tomar o capítulo II da “Fratelli tutti” e sentir-se desafiado pelas reflexões do Papa.

Sem “estragar” o gosto de beber na própria fonte da encíclica, chamo a atenção para alguns pontos mais interpeladores. O primeiro é a síntese “atualizada” que Francisco oferece da parábola ao escrever: “A parábola mostra-nos as iniciativas com que se pode refazer uma comunidade a partir de homens e mulheres que assumem como própria a fragilidade dos outros, não deixam constituir-se uma sociedade de exclusão, mas fazem-se próximos, levantam e reabilitam o caído, para que o bem seja comum. Ao mesmo tempo, a parábola adverte-nos sobre certas atitudes de pessoas que só olham para si mesmas e não atendem às exigências iniludíveis da realidade humana” (n. 67). Nessa passagem bíblica, “já não há distinção entre habitante da Judeia e habitante da Samaria, não há sacerdote nem comerciante; existem simplesmente dois tipos de pessoas: aquelas que cuidam do sofrimento e aquelas que passam ao largo; aquelas que se debruçam sobre o caído e o reconhecem necessitado de ajuda e aquelas que olham distraídas e aceleram o passo” (n. 70). E, recorrendo aos Santos Padres, vai além: “São João Crisóstomo expressou, com muita clareza, este desafio que se apresenta aos cristãos: ‘Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no templo com vestes de seda, enquanto lá fora O abandonas ao frio e à nudez’ (Homiliae in Matthaeum, 50, 3-4: PG 58, 508)”.

Depois, vem outro problema: Quem é o meu próximo? – pergunta o jovem a Jesus. Daí uma explicação: “Importa notar que para os israelitas só era considerado ‘próximo’ dois pastores que se associam (re’a), os amigos, os sócios, os compatriotas, pois eles não deviam se misturar com outros (cf. Lv 19,19). O estrangeiro, salvo se fosse um oficial romano, não tinha valor algum. Ninguém era obrigado a ajudá-lo. Certo é que em Lv 19,34 e Dt 10,19 é preceituado o amor ao estrangeiro, porém não a qualquer um, mas, sim, apenas, ao estrangeiro domiciliado em Israel e, de certo modo, assimilado, por adoção ao povo de Israel (ger). Eis, pois, um importante pano de fundo da parábola” (Recorramos a Santa Gertrudes de Helfta. São Paulo: Cultor de Livros, 2019, p. 81 – nota 42). Dito isso, notemos – com o Papa – que tal mentalidade foi se abrindo no próprio Antigo Testamento (cf. Tb 4,15; Sir 18,13 etc.), mas só ganha contornos claros no Novo Testamento (cf. Mt 7,12; Mt 5,45; Lc 6,36; 1Ts 3,12 etc.).

Ao olhar, no entanto, o sacerdote, o levita e o samaritano, somos confrontados. Daí a indagação firme do Santo Padre: “Com quem te identificas? É uma pergunta sem rodeios, direta e determinante: a qual deles te assemelhas? Precisamos de reconhecer a tentação que nos cerca de se desinteressar dos outros, especialmente dos mais frágeis. Digamos que crescemos em muitos aspetos, mas somos analfabetos no acompanhar, cuidar e sustentar os mais frágeis e vulneráveis das nossas sociedades desenvolvidas. Habituamo-nos a olhar para o outro lado, passar à margem, ignorar as situações até elas nos caírem diretamente em cima” (n. 64).

Nós, como o Bom Samaritano, “gozamos dum espaço de corresponsabilidade capaz de iniciar e gerar novos processos e transformações. Sejamos parte ativa na reabilitação e apoio das sociedades feridas” (n. 77). E mais: fazer tudo por amor de Deus, ou seja, sem esperar recompensa humana alguma: “O samaritano do caminho partiu sem esperar reconhecimentos nem obrigados. A dedicação ao serviço era a grande satisfação diante do seu Deus e na própria vida e, consequentemente, um dever. Todos temos uma responsabilidade pelo ferido que é o nosso povo e todos os povos da terra. Cuidemos da fragilidade de cada homem, cada mulher, cada criança e cada idoso, com a mesma atitude solidária e solícita, a mesma atitude de proximidade do bom samaritano” (n. 79). Cristo está nos abandonados e excluídos (cf. Mt 25,40.45).

Aprendamos, pois, a olhar os problemas de nosso tempo e a enfrentá-los por amor de Deus que é também amor ao próximo. Ambos são indissociáveis, pois ninguém consegue amar a Deus a quem não vê, se não ama o irmão a quem vê (cf. 1 Jo 4,20-21). Peçamos a graça de uma fé que opera pela caridade (cf. Gl 5,1-6) perante todos os necessitados que o Senhor coloca em nosso caminho a fim de que lhes sejamos também bons samaritanos do século XXI.

Fonte: http://www.vaticannews.va/pt