Amizade social no contexto da Campanha da Fraternidade

Amar fraternalmente nos chama para o sentido de responsabilidade para com os outros, na construção de uma família humana global, unida pelo diálogo, solidariedade e justiça, como quer o Papa.
26/01/2024 10:01
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Amizade social no contexto da Campanha da Fraternidade

Ao escrever a encíclica Fratelli Tutti, em 2020, o Papa Francisco lançou ao mundo um chamado para a ‘fraternidade e a amizade social’. Logo no primeiro parágrafo ele fala, inspirado em São Francisco de Assis, de uma “fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas, independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita”.

O tema é bastante desafiador para os tempos atuais, quando vivemos em meio a guerras e a fome de poder, que superam todos os preceitos da vivência humana. Mas ainda possível se pensarmos a partir de cada um, direcionando o olhar e o coração em um nível mais elevado, sem observar a quem, mas amar a todos, sem distinção.  E não precisamos de muito, a fé nos leva a perceber os irmãos e irmãs a quem devemos expressar a fraternidade humana. 

Ao completar os 60 anos do lançamento da Campanha da Fraternidade no Brasil, a CNBB – Conferência Nacional dos Bispos no Brasil, reacende essa chama e traz ‘Fraternidade e Amizade Social’ como tema principal para a Campanha da Fraternidade de 2024.

Para compreender com mais profundidade o tema e suas possibilidades práticas, conversamos com o Secretário Executivo das campanhas da CNBB, Pe Jean Poul Hansen.  Ele é Mestre em Teologia Dogmática, pela Universidade Pontifícia de Salamanca, tem especialização em Origens do Cristianismo, pelo Estúdio Teológico Agostiniano de Valladolid, na Espanha, e é bacharel em Teologia, pelo Pontificium Athenaeum S. Anselmi de Urbe – Faculdade de Teologia; e graduado em Filosofia pelo Instituto Filosófico São José, em Três Corações (MG). Pe. Jean Poul nasceu em Minas Gerais, município de Cruzília.

 

1. Pe. Jean, o que significa a expressão ‘amizade social’, no contexto da Campanha da Fraternidade 2024?

Significa aquilo que o Papa Francisco nos apresenta na Fratelli Tutti, um amor sem fronteiras geográficas, estéticas e morais, uma fraternidade aberta a todos, que ultrapassa nossos gostos, afetos e preferências, uma atitude de reconhecimento de que todos somos irmãos e irmãs, porque somos filhos do mesmo Pai, resgatados pelo mesmo Jesus Cristo e conduzidos pelo mesmo Espírito para uma vida de eterna comunhão na Trindade.

2. Como falar de amizade social num mundo cheio de afrontas e perseguições, que afetam a dignidade humana? Acredita que é possível, de verdade, construir uma amizade social no mundo atual?

É preciso e é urgente neste mundo, falar e testemunhar a fraternidade e a amizade social. O contexto de polarização, divisão, ódio, violência e guerras foi uma das motivações para que os nossos bispos escolhessem em 2022 esse tema para a CF 2024.Eu acredito e trabalho com a possibilidade de construir amizade social no mundo atual. Se não formos capazes de sonhar um mundo a partir da comunhão, não terá sentido nos empenhar na CF 2024.

3. Fala-se em ‘acolher além das fronteiras’. É possível amar sem olhar cor, religião ou nacionalidade? E ainda, é possível amar quem está longe ou nos é desconhecido?

É possível sim! Mais, é preciso! O lema da CF 2024 nos recorda que somos todos irmãos e irmãs, independente de morarmos no Brasil, na África ou na Ásia, de sermos brancos, pretos ou indígenas, cristãos ou muçulmanos, hinduístas ou ateus. Não se quer de nós um amor apaixonado, mas um amor philia, um amor de amizade, de fraternidade, de quem se sabe irmão e irmã, e por isso se compadece do outro.

4. As pessoas perderam o gosto pela fraternidade, do amor ao próximo? A CF é mais um convite da Igreja a abrirmos o coração para esse amor?

Sem dúvida, a CF, desde a sua criação, é um programa de conversão quaresmal. Em 2024, esse convite é concretamente para retornar ao amor ao próximo, pois São João nos diz, numa de suas cartas, que quem diz que ama a Deus que não vê, mas não ama o próximo que vê, é um mentiroso e Deus não está com ele (cf. 1Jo 4,20).

5. Quais são as maiores dificuldades e o que podemos fazer de concreto diante das divisões e extremismos que vivemos nesse momento? Como transformar o tema da CF em atitudes?

As maiores dificuldades são aquelas já apontadas nas questões anteriores: polarização, violência, ódio, mundo distante de Deus e do próximo, predomínio dos interesses pessoais, individualismo, subjetivismo etc.

O que de mais concreto nós podemos fazer é nos reapropriar desta verdade: “Vós sois todos irmãos e irmãs” (Mt 23,8) e orientar a nossa vida a partir disto.

No capítulo 3 do Texto-Base da CF 2024, apresentamos três listas de sugestões de ações concretas para alargar a nossa tenda Pessoal, Comunitária e Social. É assim que vamos transformando a CF em atitudes que mudam a nossa vida pessoal, a da nossa comunidade e da sociedade. Nessa ordem, partindo do testemunho da conversão pessoal, à conversão comunitária e social.

6. Ideologia, política e aspecto geográfico... Podem ser complicadores para implementar a fraternidade na humanidade? Porque?

Porque nos dividem, mas a divisão não é natural. É fruto do pecado. Natural é a comunhão, a fraternidade a solidariedade entre nós, criados à imagem e semelhança de Deus-comunhão. O que nos realiza como pessoas humanas não é a divisão, o ódio, a violência, mas sim a fraternidade, a unidade na diversidade, a comunhão.

7. A individualização, quando se foca apenas nos interesses pessoais, é outra barreira?

A descoberta da subjetividade e da individualidade é algo positivo e necessário para a vida e a realização do ser humano. O problema é que essa descoberta, ao invés de nos abrir ao outro com maios segurança de si, no fechou em nós mesmos, tornando-nos individualistas e subjetivistas – autorreferenciais, diria o Papa Francisco – a ponto de negarmos espaço para o outro dentro de nós e de nossa organização social. Caímos na síndrome de Caim e desenvolvemos uma “altero fobia”, ou seja, um medo, aversão e rejeição a tudo o que é diferente de mim.

8. E no Brasil, um país tão dividido política e ideologicamente, ainda podemos instaurar a fraternidade? Por onde começar?

Podemos, queremos e devemos. A começar por nós mesmos. Cada um de nós deve começar em si mesmo o processo de revisão de vida e de conversão. É só a partir de nós mesmos, contando sempre com a graça de Deus, que conseguiremos restaurar em Cristo o Reino da Fraternidade e da Amizade Social. Se o processo de conversão não começar em cada um de nós, ele jamais chegará às nossas comunidades e à nossa sociedade. 

9. Estamos vivendo no 3º milênio, entre infinitas tecnologias e inovações. Num universo tão evoluído, não deveria ser natural a paz e a harmonia entre as pessoas? Porque, não é?

A paz e a harmonia são naturais numa convivência que não é marcada pelo pecado, como aquela do jardim antes da desobediência de Adão. Nós e nossas relações com Deus, com o outro, conosco mesmos e com a natureza, fomos desconfigurados pelo pecado original, por isso, a harmonia e a paz só farão parte da nossa vida se nos convertermos e nos reconfigurarmos ao projeto de Deus. Não é a tecnologia que nos trará a paz. É a conversão!

10. A amizade social também pode fortalecer os valores espirituais?

A amizade social é um valor espiritual. Tudo o que é radicalmente humano é espiritual. Nada mais radicalmente humano do que a sua vocação para a fraternidade, a amizade social e a comunhão. Precisamos, na verdade, é colocar aquilo que nós corriqueiramente chamamos de espiritual – oração, jejum, penitência – a serviço da nossa conversão para a amizade social.

11. Os encontros nas famílias, as novenas, podem ser uma forma de despertar a amizade social? 

Sem dúvida. De nossa parte, toda iniciativa que nos leva ao encontro do outro, seja ele quem for, pode despertar para a amizade social. Os Círculos Bíblicos, a reza do Terço entre os vizinhos, a Via-Sacra na comunidade, mas também fazer um bolo e levar para comer com um(a) vizinho(a) ainda desconhecido(a), um telefonema para uma pessoa que se afastou de nós e não fizemos questão de reaproximá-la, etc. podem ser gestos de reconciliação e acolhida tão caros à vida fraterna. 

11. O convite da CF para esse debate, para refletir sobre esse amor que deveria se abrir para todos, é uma forma de espalhar esperança?  

É uma forma de anunciar a Boa Nova da Esperança definitiva. Nossa vocação última é voltar ao convívio da Santíssima Trindade. Para isso é que fomos criados. Viver na Trindade significa viver na comunhão, viver a comunhão. No céu não tem lugar para egoístas, individualistas, egocêntricos, subjetivistas etc. No céu entrarão aqueles que, acolhendo a Boa Nova da Fraternidade e Amizade Social, se abrirem à conversão e aprenderem já aqui na terra a viver em fraterna comunhão.  

Fonte: Revista Nossa Senhora Aparecida
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