A centralidade do Mistério Pascal na Iniciação à Vida Cristã

"Toda a ação evangelizadora da Igreja depende desse mistério, que não é uma doutrina, mas a apresentação própria da pessoa de Jesus." (cf. DAp 244)
14/03/2023 10:03
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A centralidade do Mistério Pascal  na Iniciação à Vida Cristã

No último dia 22 de fevereiro, Quarta-feira de Cinzas, deu-se início à Quaresma, que terminará no dia 6 de abril, às vésperas da Sexta-feira Santa, quando celebramos o Tríduo Pascal: Paixão-Morte e Ressurreição de Cristo. No domingo, 9 de abril, dia da Ascenção do Senhor, inicia-se o Tempo Pascal, que neste ano vai até 28 de maio, dia de Pentecostes. 

O Mistério Pascal nos mostra que a salvação se dá em Jesus através do tempo e é traduzida em todas as celebrações litúrgicas que não são memórias de um passado inatingível, mas um evento que engloba a humanidade em sua inteireza gerando contemporaneidade.

Para entendermos melhor sobre a influência desses acontecimentos na vida da Igreja e nossa vida, conversamos com o nosso bispo auxiliar, Dom Aparecido Donizeti.  

RV NSA: O que significa a Ressureição de Jesus Cristo? 

Dom Aparecido: Conforme nos recorda o Catecismo da Igreja Católica, “a ressurreição de Cristo não foi um regresso à vida terrena, como no caso das ressurreições que Ele tinha realizado antes da Páscoa: a filha de Jairo, o jovem de Naim e Lázaro. Esses fatos eram acontecimentos milagrosos, mas as pessoas miraculadas reencontravam, pelo poder de Jesus, uma vida terrena «normal»: em dado momento, voltariam a morrer.

A ressurreição de Cristo é essencialmente diferente. No seu corpo ressuscitado, Ele passa do estado de morte a uma outra vida, para além do tempo e do espaço. O corpo de Cristo é, na ressurreição, cheio do poder do Espírito Santo; participa da vida divina no estado da sua glória, de tal modo que São Paulo pode dizer de Cristo que Ele é o ‘homem celeste’ (n.646). É bom lembrar que Cristo ressuscitou com o mesmo corpo gerado no ventre de Maria, mas que agora não sujeito mais ao tempo e espaço, ou seja, um corpo glorioso

 

RV NSA: Deus abandonou Jesus Cristo no momento em que ele foi pregado na Cruz? 

Dom Aparecido: Recordo aqui o livro do profeta Isaías que diz: “Por acaso uma mulher se esquecerá de sua criancinha de peito? Não se compadecerá ela do filho do seu ventre? Ainda que as mulheres se esquecessem, eu não me esqueceria de ti” (Is. 49,15). É muito comum acontecer do ser humano em certos momentos de sua vida, sobretudo os mais exigentes, viver a sensação de estar sozinho e abandonado. Tenhamos presente que Jesus assumiu em tudo nossa condição humana, menos o pecado. Por essa razão entendemos a razão pela qual os evangelistas Marcos e Mateus escrevem que Jesus disse: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Mc 15,34; Mt 27,46). Essa é a condição humana que Jesus assumiu e viveu. Por isso, no momento final de sua vida, pregado na cruz, ele soltou um grande grito de dor.

Vale aqui recordar o que São João Paulo II disse em sua audiência geral em 30 de novembro de 1988: “O fato de Jesus usar as palavras iniciais do Salmo 21/22 em seu primeiro clamor é significativo por várias razões. No espírito de Jesus, que rezava segundo os textos sagrados de seu povo, foram depositadas muitas daquelas palavras e frases que o impressionaram particularmente porque expressavam melhor a necessidade e a angústia do homem diante de Deus e aludiam de alguma forma à condição daquele que tomaria sobre si toda a nossa iniquidade” (cf. Is 53, 11). 

Continua ele: “Por isso, na hora do Calvário, foi espontâneo que Jesus se apropriasse daquela pergunta que o Salmista faz a Deus, sentindo-se esgotado pelo sofrimento. Mas na sua boca o "porquê" dirigido a Deus era muito eficaz para exprimir um estupor ferido pelo sofrimento que não tinha uma explicação simplesmente humana, mas constituía um mistério do qual só o Pai tinha a chave. Por isso, mesmo a partir da memória do Salmo lido ou recitado na sinagoga, a pergunta continha um sentido teológico em relação ao sacrifício pelo qual Cristo teve que, em total solidariedade com o homem pecador, experimentar o abandono de Deus em si mesmo. Sob a influência desta tremenda experiência interior, Jesus moribundo encontra forças para lançar este grito”.


RV NSA: É nesse mistério que está embasada toda a vida da Igreja?

Dom Aparecido: Precisamos ter presente que a fé na Ressurreição de Jesus jamais deva ser desconectada de sua encarnação, sua vida marcada pelo “fazer a vontade do Pai” no anúncio e realização do Reino e de sua paixão e morte. Outro elemento fundamental é que a Igreja nasce e tem sua razão de ser em Jesus Cristo. Assim nos diz o Catecismo da Igreja: “a Igreja nasceu primeiramente do dom total de Cristo para a nossa salvação, antecipado na instituição da Eucaristia e realizado na Cruz” (n.766). E é precisamente para ser sacramento de salvação que a Igreja existe. Pela sua própria natureza existe para levar a mensagem de salvação a todos os povos e fazer com que todos se tornem discípulos do Senhor. 

Assim, quando falamos em evangelização da Igreja, temos presente o anúncio do evangelho. Evangelho esse do Cristo Crucificado-Ressuscitado.  Neste sentido que podemos afirmar que a vida da Igreja, sua vocação e missão no mundo está fundamentada e sustentada por essa grande verdade de fé: 

 Cristo verdadeiramente ressuscitou e está vivo em nosso meio.

 

RV NSA: Cristo está vivo... Essa identidade pascal da comunidade primitiva é a mesma identidade da Igreja hoje?

Dom Aparecido: Da mesma forma que Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre assim também o é a Igreja. Essa, como sacramento universal de salvação, é chamada no seguimento ao Cristo Crucificado-Ressuscitado testemunhar sua fé no poder da vida sobre a morte, no poder do amor sobre o ódio e, no poder da verdade sobre a mentira. Mesmo em um contexto onde a chamada “mudança de época” é um fato incontestável, os valores do evangelho são os mesmos que sustentam e orientam desde sempre a caminhada da Igreja em todos os tempos e lugares.

Em sua exortação apostólica Evangelli Gaudium, o Papa Francisco nos diz: “Jesus Cristo vive verdadeiramente. Caso contrário, ‘se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação’ (1 Cor 15, 14). Diz-nos o Evangelho que, quando os primeiros discípulos saíram a pregar, ‘o Senhor cooperava com eles, confirmando a Palavra’ (Mc 16, 20). E o mesmo acontece hoje. Somos convidados a descobri-lo, a vivê-lo. Cristo ressuscitado e glorioso é a fonte profunda da nossa esperança, e não nos faltará a sua ajuda para cumprir a missão que nos confia” (n.275). 

 

RV NSA: A Ressurreição de Cristo também é ponto de partida para a nossa confissão de fé? 

Dom Aparecido: São Paulo ao dirigir-se em sua Carta aos Coríntios afirma o seguinte: “se Cristo não ressuscitou, vazia é nossa pregação, vazia também é a vossa fé” (1Cor 15,14). Creio que essa frase já nos ajuda a compreender que a fé na ressurreição de Cristo é o grande fundamento sobre o qual construímos toda a nossa caminhada cristã. É acreditando na vida que venceu a morte que encontramos força e graça para lidarmos com todas as dificuldades e tribulações que a vida nos apresente.  

Na verdade, se Cristo não tivesse ressuscitado não teriam os apóstolos anunciado o evangelho e dado testemunho com a própria vida. Foi precisamente a partir do anuncio e testemunho dos apóstolos que muitas comunidades cristãs foram se formando e se fortalecendo mesmo diante das perseguições da parte do Império Romano. E é esta mesma fé que hoje professamos que nos sustenta em meio a tantas adversidades e tribulações. É esta mesma fé a razão pela qual, muitos ainda hoje, são capazes de dar a própria vida em prol dos que mais precisam e sofrem neste mundo. 

 

RV NSA: O Mistério Pascal: Paixão-Morte-Ressurreição de Cristo, Ascensão e Pentecostes. Esses acontecimentos nos ajudam a compreender e a vivenciar melhor a liturgia? Como? 

Dom Aparecido: A questão fundamental aqui é a necessidade e urgência de uma catequese verdadeiramente mais mistagógica, que leve cada batizado, numa linguagem adequada e apropriada para cada fase da vida, compreender mais profundamente o Mistério Pascal. Diz o Catecismo da Igreja: “Na liturgia da Igreja, Cristo significa e realiza principalmente o seu mistério pascal. Durante a sua vida terrena, Jesus anunciava pelo seu ensino e antecipava pelos seus atos o seu mistério pascal. Uma vez chegada a sua ‘Hora’, Jesus vive o único acontecimento da história que não passa jamais: 

 Morre, é sepultado, ressuscita de entre os 

mortos e senta-Se à direita do Pai ‘uma vez por todas’” (CIC n. 1085).

 Assim, para poder compreender, celebrar e vivenciar verdadeiramente a Liturgia, sobretudo eucarística, em toda sua riqueza é fundamental a chamada catequese mistagógica. Caso contrário, não será possível observar e colocar em pratica o que afirma a Constituição SACROSANCTUM CONCILIUM: “Para assegurar esta eficácia plena, é necessário, porém, que os fiéis celebrem a Liturgia com retidão de espírito, unam a sua mente às palavras que pronunciam, cooperem com a graça de Deus, não aconteça de a receberem em vão. Por conseguinte, devem os pastores de almas vigiar por que não só se observem, na ação litúrgica, as leis que regulam a celebração válida e lícita, mas também que os fiéis participem nela consciente, ativa e frutuosamente” (SC. n.11).

 

RV NSA: A iniciação à Vida Cristã também tem como ponto de partida o Mistério Pascal?  

Dom Aparecido: Creio que esta resposta esteja clara no Catecismo da Igreja Católica que nos recorda o seguinte: “No coração da catequese, encontramos essencialmente uma Pessoa: Jesus de Nazaré, Filho único do Pai [...], que sofreu e morreu por nós e que agora, ressuscitado, vive conosco para sempre [...]. Catequizar [...] é revelar, na Pessoa de Cristo, todo o desígnio eterno de Deus [...]. É procurar compreender o significado dos gestos e das palavras de Cristo e dos sinais por Ele realizados» (7). O fim da catequese é «pôr em comunhão com Jesus Cristo: somente Ele pode levar ao amor do Pai, no Espírito, e fazer-nos participar na vida da Santíssima Trindade” (n. 426). 

Assim sendo, todo processo de Iniciação à Vida Cristã parte de Jesus Cristo e tem como objetivo principal levar cada pessoa a mergulhar profundamente em seu Mistério Pascal. No Documento 107 da CNBB temos bem expressa essa questão: “A Iniciação à Vida Cristã significa imersão em uma nova realidade. Essa realidade nova e inesperada à qual ela introduz é o mistério de Cristo Jesus em sua paixão, morte, ressurreição, ascensão, envio do Espírito Santo e retorno glorioso” (Doc 107, n. 88).

Fonte: Revista Nossa Senhora Aparecida
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