As desigualdades sociais e a solidariedade

Além da fome e das necessidades básicas, o preconceito também oprime e humilha ainda mais quem já vive marginalizado pela sociedade.
10/11/2022 11:11
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As desigualdades sociais e a solidariedade

A pobreza existe no mundo desde o princípio da humanidade. O que diferencia são os tratamentos dispensados às pessoas pobres pelas lideranças políticas e pelos que detém maior poder financeiro.  

Na linha da pobreza podemos incluir famílias que não possuem uma renda mínima para viver com dignidade, moradores de rua, refugiados e imigrantes. Apesar das dificuldades internas, o Brasil ainda representa uma esperança e recebe aqui milhares de imigrantes diariamente, incrementando ainda mais o número de pessoas que precisam da nossa ajuda. 

Recentemente surgiu o termo ‘Aporofobia’ – Fobia de pobre, que tem feito florescer debates e ações sociais por parte da Igreja.  

Para entendermos mais sobre o tema e como a aporofobia contribui para o crescimento da desigualdade, vamos conversar com o membro da Coordenação do Fórum Nacional de Migração e Refúgio e Coordenador da Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de Porto Alegre, Elton Bozzetto, ele é formado em Filosofia, Teologia e tem Especialização em Comunicação e Cooperativismo, Coordena a Dimensão de Justiça, Caridade e Paz e também as atividades do Dia do Pobre da Arquidiocese de Porto Alegre desde a sua criação, é Presidente do SENALBA/RS e ainda professor universitário para a disciplina de Doutrina Social da Igreja na PUC/RS. 

 

RV NSA: Poderia nos explicar um pouco mais sobre o que trata a Aporofobia?

elton: A história do Brasil nos apresenta o triste legado de discriminação e de apartheid social, que foi sedimentando uma conceituação e postura que se manifesta de muitas formas. Ou seja, a indiferença com o ser humano tornou-se um modo de vida. Vivemos como se determinadas pessoas fossem seres estranhos, de segunda categoria, despossuídas de direitos e dignidade, que podemos submetê-los a objetos de nossos interesses, desejos, intenções e emoções. 

A atitude de manter os pobres longe dos olhos governamentais, para superar o empobrecimento, tem uma tradição no país que remonta ao regime escravocrata. No entanto, recentemente essa condição foi acrescida de atitude de ódio. Isso denominamos aporofobia. A aversão a alguém percebido como diferente. 

Tivemos uma recuperação de elementos que conspiram contra a integridade da pessoa. Vivemos uma espécie de neorracionarísmo no qual, segundo alguns teóricos, retornamos a conceitos ultrapassados para solução fácil a complexos problemas atuais da sociedade. Então, num contexto de acumulação, supressão de direitos, de disputas econômicas entre desiguais, de avanços tecnológicos excludentes, ao invés de reconhecer a pessoa como sujeito de direitos, se faz uma opção pela sua submissão a interesses de indivíduos e grupos. Sobretudo no ocidente, o reacionarismo ocorre pela política de democracia liberal. É preciso lembrar a orientação do Papa Francisco na ‘Laudato Si’, que tudo está interligado, por isso, é importante pôr em questionamento modelos de desenvolvimento, produção e consumo que ao invés de promover o crescimento da humanidade, aprofundam as diferenças e distâncias sociais.  

 

RV NSA: Se a pobreza existe ao longo da história da humanidade, porque o termo só surgiu agora?   

elton: O conceito de aporofobia compreende toda discriminação contra pessoa, pela sua condição de pobreza. Ofensa que agride a dignidade de alguém. O termo é recente. No ano de 2017, a espanhola Adela Cortina, professora de Filosofia Moral da Universidade de Valença, o popularizou numa de suas teses, para evidenciar o que ela chama de sistêmica rejeição à pobreza. 

No Brasil, o Vigário Episcopal para a População em Situação de Rua da Arquidiocese de São Paulo, Pe. Júlio Lancelotti, aplicou apropriadamente o termo para a postura de larga parcela da população em relação a este contingente de pessoas.  

 

RV NSA: Os imigrantes também sofrem discriminação?

elton: Por diversas circunstâncias. Primeiro, porque se trata de alguém diferente. Depois, porque o migrante de modo geral é negro, é africano, é pobre, é islâmico, fala outra língua, fugiu de seu país, possui outras expressões culturais. Lembro de um fato exemplar. Logo que iniciou a recente onda migratória nos anos de 2010 a 2012, um grupo de senegaleses reuniu-se numa tarde de domingo, na Praça Dante Alighieri, em Caxias do Sul, para tocar seus tambores e atabaques e promover um encontro cultural.  A atividade tornou-se objeto de observação policial e rejeição pela maioria da população da cidade, embora filhos ou descendentes de migrantes. 

Outro fator é estrutural. A falta de reconhecimento de nossa legislação brasileira para a formação acadêmica dos migrantes, que lhes asseguraria acesso qualificado ao mercado de trabalho. Eles precisam fazer um longo processo de revalidação para exercer sua profissão aqui. Lembro do Pierre, haitiano com mestrado em Engenharia Civil que fala cinco línguas e trabalha como frentista em um posto de combustíveis na Av. Farrapos, em Porto Alegre, mesmo que o RS necessite anualmente de 500 novos engenheiros civis.

A discriminação também está na dificuldade de acesso às políticas públicas. Mesmo que o migrante tenha Registro Nacional de Migrante, CPF e Carteira de Trabalho, o acesso aos benefícios sociais são sonegados a eles. Muitos municípios ainda não os incluem no CADUNICO ou no cadastro de Inscrição Social. E mais: os serviços de busca ativa, muitas vezes não os contemplam nos programas governamentais. Ou seja, os invisíveis são ainda mais invisibilizados pela sua condição de migrantes.

RV NSA: Como o Brasil tem tratado os seus pobres? Nas escolas, hospitais, comércio, segurança...?

elton: De um modo discriminatório e desrespeitoso. Apesar da Constituição de 1988 assegurar um rol de direitos, as pessoas pobres tem acesso dificultado às garantias constitucionais, salvo em alguns estados e em algumas “ilhas” do país. É trágica a situação apontada por estudo da Unicef, de que o país tem quase 1,4 milhão de crianças e adolescentes entre 6 e 17 anos fora da escola. Na área da saúde as políticas não asseguram atendimento em todas as especialidades e acesso à medicação adequada.

Na área da segurança, o preconceito os criminaliza como responsáveis pela violência. O fator mais trágico é que os pobres ainda são tratados não como sujeitos de direito, mas como objeto de interesses, desejos e emoções. De modo geral, diante da pobreza, as pessoas fazem doação de alimento, roupa, sem perguntar pela necessária mudança de sua realidade. Os pobres são transformados em dependentes de nossas ações de caridade e não promovidos a pessoas autônomas e qualificadas para assegurar a sua própria dignidade pelo trabalho e por suas próprias conquistas.

 

RV NSA: Aporofobia é considerada crime aqui?

elton: Ainda não. Há um projeto em tramitação. O texto legislativo define a discriminação contra pessoa em razão da condição de pobreza como crime de injúria. É o que propõe o Projeto de Lei 1.636/2022, do Senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Pela proposta, o preconceito contra pobre também poderá qualificar crime de homicídio e majorar o crime de lesão corporal praticado pela mesma razão.

 

RV NSA: De onde vem esse preconceito? Da formação da pessoa?

elton: Em nosso país o preconceito é uma nota cultural. Como diz-se: “o preconceito se bebe com o leite materno”, significa que se reproduz automaticamente em razão de atitudes, opiniões e manifestações expressas. A maioria dos teóricos assinala que a origem do preconceito “está nos valores, ideologias, interesses ou crenças de um determinado grupo social”. Sem dúvida, que a formação recebida é determinante para o superar ou reproduzir o preconceito. 

 

RV NSA: O preconceito potencializa a marginalização?

elton: Sem dúvida. Porque ele é excludente. Ou seja: promove atitudes que conspiram contra a autonomia, a autodeterminação e a independência da outra pessoa. O que se tem observado é que essa postura se agrava quando essa pessoa está em situação de vulnerabilidade social. Compreendo que fazer a caridade não é doar para o outro, mas ir ao encontro da necessidade do outro. Isso exige empatia para identificar a necessidade do outro, que muitas vezes avança para além do aspecto econômico.  A concepção de caridade revisado.  

 

RV NSA: A Aporofobia trouxe um novo olhar para a sociedade mais carente? Chamou ao debate?

elton: O termo nos provoca a uma reflexão mais aprofundada. A chamada de atenção está indicando que o preconceito não configura apenas uma postura discriminatória. É pior: é uma atitude odiosa em relação às pessoas pobres.  A abordagem chama a atenção sobre uma concepção e uma atitude naturalizada. Muitas vezes o autor normaliza seus atos com a convicção que isso não fere a dignidade alheia. A melhor maneira de superar é ter a coragem de compreendê-la e assumi-la como uma atitude equivocada.

 

RV NSA: É possível sair dessa cultura de hostilidade para uma cultura de hospitalidade? Como?

elton: Lembro aqui de uma reflexão filosófica do grande pensador Immanuel Kant na sua obra “A Paz Perpétua”. Para ele, os bens que existem sobre a face da terra não pertencem a esse ou a aquele homem, mas à  humanidade. E qualquer pessoa tem o direito de prover a sua subsistência em qualquer lugar do planeta. A hospitalidade não necessariamente se refere a um lugar, mas a um modo de vida que acolha, proteja, promova e integra todas as pessoas. Ora, isso confronta diametralmente o conceito da aparofobia. O pobre só tem uma defesa: a sua pobreza e a condição de necessidade em que se encontra. Portanto, para vencer a aparofobia é necessário retomar a natureza humana com sensibilidade, humildade, compaixão e empatia.

RV NSA: A formação educacional, a partir das escolas, poderia contribuir para uma mudança? 

elton: Sem dúvida. Confesso que comungo com uma preocupação de muitas pessoas. Há uma ansiedade de pais, educadores e especialistas pelo domínio das ciências exatas, da tecnologia, da resposta imediata aos impulsos externos, quase transformando o humano em robô. Nossos dias estão impondo uma educação formal que descarta o aprendizado do civismo, da moral, da capacidade de reflexão e análise, do pensamento crítico, da espiritualidade. Não é questão de saudosismo, mas a observação me permite concluir que o ensino precisa retomar a escola de humanidade. 

Por outro lado, tenho uma gratidão ao tempo, porque nos permitiu a oportunidade de jantar todos os dias com nossas filhas. O jantar se tornou um espaço filosófico e muitas vezes teológico, com uma, duas horas de diálogo e reflexão. Nesse ambiente, nossas filhas nos tornaram pessoas sensíveis, reflexivas, atenciosas e propositivas, porque exigiu que compreendêssemos suas necessidades, suas angústias e suas incertezas.   

 

RV NSA: A pobreza é um problema de ação coletiva? Porque quem poderia resolver não o faz?

elton: Em primeiro lugar, se a pobreza é um problema coletivo, não se pode delegar responsabilidade para os outros. Todos somos responsáveis pela sua superação. Alguns têm responsabilidade maiores. Portanto, precisam ser cobradas por atitudes mais arrojadas. Os gestores públicos precisam dar conta de maiores responsabilidades, de políticas públicas de atendimento emergencial, de educação, de inclusão produtiva e de garantia de direitos. Mas, todos têm sua parcela de responsabilidade e necessária contribuição. Reitero que superar a pobreza não é saciar a fome. A vulnerabilidade social é resultado de uma série de direitos suprimidos e necessidades não satisfeitas. É necessário conhecer em profundidade as razões da pobreza e estabelecer a relação de ajuda para superá-la, a partir das condicionantes que a provocam.

 

RV NSA: Já foi apresentado algum projeto ao Governo Federal, nesse sentido?  

elton: O Sistema Único da Assistência Social tem uma dinâmica muito importante. A política pública para a área social é resultado de um grande processo de participação da sociedade na proposição e no controle das ações governamentais determinado pela Lei Orgânica da Assistência Social. As conferências de assistência social que começam nos municípios e culminam com o processo assemblear nacional já definiram inúmeras proposições.

Ou seja, definições não faltam. Enfrentamos um problema que é de concepção política. Nos últimos anos, os governos têm esvaziado os processos de participação da população e os programas e estruturas de controle público. Proposições são abundantes na política pública, mas os governos têm se desresponsabilizado e têm sido inoperantes na execução das determinações que asseguram os direitos fundamentais da população, sobretudo a que se encontra numa situação de vulnerabilidade. Ou, adotando atitudes como a de um prefeito gaúcho, quando abordado para a adoção de uma política de acolhimento e atendimento aos migrantes, que manifestou: “isso é coisa para a caridade da Igreja Católica fazer”. 

 

RV NSA: Você esteve recentemente em um Congresso Nacional tratando especificamente de moradores de rua. Há novas propostas?

elton: A Igreja Católica e outras iniciativas de Organizações da Sociedade Civil realizam um grande trabalho em todo o Brasil. A Pastoral do Povo da Rua é uma inspiração divina da CNBB que está se fortalecendo e disseminando organização do atendimento pastoral em todo o país. A metodologia da pastoral contempla o atendimento emergencial, o cuidado das necessidades básicas, da superação da dependência química, mas também atua numa dinâmica de incidência política para a implementação de políticas públicas, com programas e projetos que cuidem da assistência em saúde, do acesso à habitação, de programas de qualificação, de fomento a projetos de empreendimentos autogestionários e de reinserção no mercado de trabalho. Acredito muito nas parcerias entre as organizações da Igreja e as OSCs com os governos. Aqui em Porto Alegre temos a política pública do Ação Rua, uma parceria para abordagem de rua em conexão com a rede de proteção social básica e atendimento especializado. Quase todas as entidades executoras dessa política são organizações da Igreja Católica, que promovem um atendimento humanizado. Esse é um modelo capaz de promover atendimento de qualidade e iniciar um processo de superação da condição de rua. 

 

RV NSA: Que mensagem você deixaria aos nossos leitores quanto ao ‘olhar para os pobres’?

elton: A pessoa em situação de rua não é alguém digno de pena. Ela é um sujeito de direitos, que precisa ser compreendido, reconhecido e amado. O Cícero, o Português, o Beiço, a Eliane, o Nilson... nos ensinam com suas histórias de vida e superação muito mais que as teses acadêmicas e as bibliografias que tentam interpretar o fenômeno da população de rua.  

Fonte: Revista Nossa Senhora Aparecida
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