Crianças: elas são especiais

Em casa, na escola, na rua, onde quer que estejam, esses pequenos encantam, ensinam, cobram, aprendem...
14/10/2022 13:10
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Crianças: elas são especiais

 

Desde que nascem as crianças trazem um novo dinamismo à vida dos pais. Umas vem mais especiais que outras e mudam radicalmente o mundo da família. E é um pouquinho delas, as crianças autistas, que vamos falar nessa edição, em referência ao Dia da Crianças. 

O objetivo é levar mais conhecimento à sociedade e despertar a atenção das pessoas, para que ao ver uma criança muito ativa, ou tendo comportamentos diferentes do que os dos seus filhos, não as julgue e nem condene seus pais, antes de conhecê-la e saber o motivo de suas atitudes. 

Sim, o preconceito existe e é enfrentado diariamente por muitos familiares de autistas, às vezes pela falta de conhecimento e às vezes por falta de empatia. A psicóloga e pedagoga Kelly Monteiro Pereira, coordenadora da Clínica Escola do Transtorno do Espectro Autista – CETEA, conta que muitas vezes presenciou cenas de pais de autistas, quando esses estão com seus filhos em determinados locais, e pessoas no entorno expressarem frases desagradáveis, mas não observam que é a condição daquela criança.

Então, salienta ela, “quando estamos em algum local com muitas pessoas, como a igreja por exemplo, se perceber que uma criança grita, chora excessivamente, principalmente na hora dos cantos e louvores, se tem algumas estereotipias como bater palmas e andar na ponta dos pés, ou mesmo num restaurante onde tem muitas conversas e um cheiro mais acentuado, se a criança não estiver bem regulada vai começar a gritar e chorar, pois não consegue lidar com essas situações. E as pessoas criticam em vez de olhar e perguntar: pai você precisa de ajuda? Essas crianças as encontramos em todos os lugares, então, antes de julgar, é importante compreender que são traços de autismo”. 

O problema é maior quando o preconceito está dentro de casa. Quando falta aceitação dos próprios pais, há a negação e o luto, a perda do filho perfeito, ao assumir que ele tem uma necessidade especial. A psicóloga diz que alguns conseguem se levantar e outros não. “A partir do momento que assumem, fica muito mais fácil enfrentar e até ser compreendido, mas às vezes prevalece o medo de ser julgado, de sofrer preconceito. Sempre falo para os pais: é um diagnóstico, mas o seu filho sempre vai ser o seu filho, ele vai precisar de limites, de regras, de respeito, de educação, todos os ensinamentos que um pai precisa dar com seu filho, isso não vai mudar, mas ele vai passar a compreender determinadas situações, que vão facilitar a sua convivência social”. 


Comportamentos específicos 

“Uma criança autista tem muitas particularidades”, diz Kelly, ao explicar que, diferentemente de outras síndromes, não existem características físicas aparentes no autista, mas o que se observa é o comportamento, a linguagem, a interação social. Aliás, uma deficiência que parece ter aflorado nos últimos tempos, com o aumento no número de pessoas com autismo. Na verdade, não é bem assim. O que está havendo é mais atenção dos especialistas, e até dos pais, para com elas. 

Por conta da pandemia, os pais ficaram mais tempo com seus filhos, então começaram a perceber neles comportamentos diferentes de outras crianças. A escola também começou a observar melhor e lhes dar retorno. “Temos inclusive muitos adultos que agora estão se identificando como autistas, pois antigamente não se tinha esse diagnóstico tão evidente. Hoje os estudos mais avançados têm contribuído”, esclarece Kelly.

 

Escola especializada

O surgimento do CETEA Juditha Paludo Zanuzzo, implantada em Cascavel há dois anos, é um exemplo dessa busca dos pais por um tratamento mais especializado. “Somos a primeira instituição do Paraná e a segunda do Brasil, específica para o atendimento, no mesmo espaço, às especificidades clínicas e pedagógicas de crianças com Transtorno do Espectro Autista”, diz Kelly, ao salientar que ela nasceu de um movimento de mães que levaram o projeto ao prefeito, que encampou a ideia e aproveitou um espaço disponível.

O fato de a instituição ser nova ainda gera uma certa resistência, “mas estamos sentindo que os pais estão cada vez mais querendo trazer seus filhos para cá. Diariamente recebemos ligações de pais que acabaram de receber o diagnóstico e querem conhecer a escola. Estamos bem felizes porque temos um bom desenvolvimento das crianças aqui”, diz a coordenadora que desde 2012 trabalha especificamente com essa área. 

E, os alunos que frequentam a clínica-escola estão sendo bem assistidos. Alguns tem conseguido inclusive frequentar a catequese e até fizeram a primeira comunhão. De acordo com Kelly, os profissionais são preparados para trabalhar com essa especialidade, eles são convidados a estarem na clínica-escola por terem formação especializada e experiência no trabalho com essas crianças.

O conteúdo é o mesmo da rede pública, porém adaptado para a particularidade de cada criança. A forma de ensinar é que é diferente, uma vez que é personalizado, com metodologia diferente. “A partir da singularidade de cada um conseguimos desenvolver um trabalho melhor. Não adianta querer realizar a mesma atividade para duas crianças que são totalmente diferentes. Temos gêmeos aqui, onde os dois recebem o mesmo conteúdo, porém a atividade é bem diferente”, explica a coordenadora. 

As turmas variam de 1 a 3 alunos, indo do infantil 4 até o 5º ano quando é encaminhado ao ensino médio nas escolas do município. “Nosso objetivo é que a criança venha, permaneça conosco por um tempo, e retorne para o ensino regular, antes de estar indo para o Estado, pois daqui ele sai mais preparado para essa segunda etapa”, explica Kelly. Segundo ela, quanto mais precoce a criança entrar no CETEA, melhor vai conseguir caminhar e ter autonomia. Em dois anos já tem dois casos de crianças que retornaram ao ensino regular e estão bem e ano que vem irão para o estado.

 

Clínica e escola se complementam

No mesmo local funcionam a parte educacional e a parte clínica, sendo que, no período escolar o aluno fica 4 horas estudando e, no contraturno, faz as terapias com os profissionais da clínica, como psicólogo, fonoaudiólogo, entre outros. Atendimentos que foram ampliados desde o início de agosto, com a contratação de novos profissionais.

Além de acompanhar o desenvolvimento dos filhos, através de reuniões, os pais também recebem acompanhamento clínico com terapias integrativas, como aurícula, acupuntura, Reik, barra de access. “Ou seja, enquanto a criança estará em terapia os pais também estão, porque eles também precisam ser cuidados”, explica Kelly.

Em alguns casos, segundo a psicóloga, se sabe que se formarão adultos autônomos, que conseguirão casar, ter filhos e seguir sua vida normal. Já outros não terão essas condições, porque tem o grau mais avançado e alguns até com grau de deficiência mental associado e por isso sempre dependerão dos seus pais. 

 

Pioneiro no ensino

A primeira clínica-escola surgiu no Rio de Janeiro, fundada pela Berenice Piana, autora da Lei do Autismo, mas tem moldes diferentes, pois foi criada de acordo com as necessidades daquela região. “As mães se reuniram, reivindicaram e montamos a nossa clínica-escola, da forma como entendíamos necessário para a nossa realidade”, salientou Kelly.

Para ingressar, as crianças passam por uma avaliação na secretaria de educação e depois pela unidade básica de saúde, e o médico a encaminha para a clínica-escola, que é totalmente mantida pelo município, enquanto os profissionais da área de saúde são mantidos pelo SISOP.

Atualmente são 30 professores para 60 alunos, entre os turnos da manhã e tarde. Novas vagas foram abertas recentemente e mais crianças da rede municipal, que estão na fila de espera aguardando vagas, serão chamadas. 

a origem da síndrome

A coordenadora do CETEA ressalta que 80% dos casos tem origem genética e 20% em fatores ambientais. Os genéticos, normalmente têm, em suas famílias, um caso de autismo. “Temos casos de irmãos, primos e outros parentes, inclusive um caso em que há seis autistas na mesma família.” Já, os fatores ambientais são: nascimento prematuro, medicamentos antidepressivos consumidos durante a gravidez, sangramentos maternos, diabete gestacional, criança que nasceu com baixo peso, entre outros fatores. 

Kelly também ressalta que muitos adultos hoje estão se identificando autistas, porque os estudos evoluíram e surgiram novos critérios de diagnóstico, que vai do leve, moderado, ao grave. “Quanto às crianças, os pais passaram a observar melhor o comportamento social, a fala e atitudes de seus filhos e os levando para profissionais que fazem observações mais pontuais. Eu mesma, sou psicóloga, e atuo numa clínica onde só faço avaliação para identificar autismo, então temos mais crianças laudadas, buscando acompanhamento".

Porém, importante salientar que, em nenhum dos casos, seja de origem ambiental ou genética, a culpa é dos pais. A criança nasce autista e normalmente a deficiência é detectada após os dois anos de idade, pois é onde começam a aparecer os maiores traços, embora algumas demonstrem sinais mais cedo, como não sorrir, não pegar objetos, não fixar o olhar nos pais, não estender os braços quando a mamãe pede para dar o colo, que não faz interação com a família. Enfim, são demonstrações que pedem uma avaliação clínica e podem trazer o laudo positivo ainda mais cedo.


Ensinando com  o coração

A coordenadora da escola, Kelly, se emociona ao falar do seu trabalho. “Estou na educação especial desde 2005, quando entrei na APAE. E desde 2012 só trabalho com autistas na rede municipal de ensino. Eu vibro com cada avanço das crianças, porque sei que está se desenvolvendo e eu estou no caminho certo. Muitas chegaram aqui sem saber ir no banheiro sozinhas, hoje organizam a sua mochila, conseguem sentar ouvir histórias, participar de brincadeiras, interagir, e não tem o que pague isso. Temos que amar de verdade e nos entregar totalmente para elas”.

Amar e superar

E é esse grande amor que também dá suporte às famílias dos autistas, onde, praticamente tudo passa a ser diferente. A experiência está sendo vivenciada pelos pais do Arthur, Sigmar e Alinie Barbian Dinnebier. 

Ela diz que ser mãe de autista é ver o mundo com outros olhos. “Mudamos o nosso olhar sobre as coisas e passamos a ser os olhos do nosso filho. Passamos rapidamente pelo luto do diagnóstico e fomos à luta!”. Em casa muitas coisas mudaram para se enquadrar na nova rotina, mas eles não deixaram de fora atividades importantes como trabalho, relacionamentos e viagens. “Nossa vida deu um 360°, literalmente. Nos adaptamos pra tudo. Viajamos em locais que para ele será prazeroso e, consequentemente, para nós também”, diz Alinie, salientando que a relação com amigos e familiares foi de acolhida. “De todos, mesmo. Nunca sofremos preconceito. Graças a Deus!”

Quanto aos estudos, o Arthur passou por várias escolas particulares até ser realmente incluso no Colégio Público. “Passou pelo município, escola grandiosa pelos profissionais que ali atuam”, afirmou a mãe.   

No momento, está em fase de adaptação em colégio estadual, com professora de apoio, sala com recursos, cuidador de pátio... Uma equipe preparada, segundo a mãe, e com manejo adequado para ele. “Fácil não é mesmo. Mas diariamente buscamos os direitos por ele adquiridos e comemoramos as conquistas por ele alcançadas. Uma verdadeira montanha-russa de sentimentos”.

 

Falta de conhecimento atrasou diagnóstico

O mesmo desafio é encarado diariamente pelos pais do João Gabriel, Lariana e Lucas Simões.  

Aliás, “É um desafio todos os dias, assim como é ser pai/mãe de qualquer criança. A sociedade muitas vezes nos vê como pessoas frágeis ou “coitados”, o que acaba desmotivando nossa capacidade de sermos bons pais”, diz Lucas, ao salientar que a diferença está na importância que dão para as pequenas vitórias do filho, as quais são vistas como grandes avanços. “O que para alguns pais pareçam parte normal do desenvolvimento do filho, para nós, pai/mãe de autista, é algo fantástico”.

Quando bebê João Gabriel tinha um desenvolvimento normal, segundo os médicos, e os pais jamais imaginavam algo errado, porém, com 1 ano e 4 meses, ele teve uma convulsão febril. “Desde então mudamos a forma de tratá-lo. A superproteção começou a fazer parte da nossa maneira de educar, e quando começou a frequentar a escola, com 3 anos, os comportamentos em relação às outras crianças se acentuaram. Foi sugerido que procurássemos profissionais para as questões de aprendizagem, no entanto, nenhum médico dava um diagnóstico preciso, fazendo com que ficássemos perdidos. Só quando ele tinha 4 anos e meio, um médico especialista em autismo nos abriu os olhos”. Lucas conta que foi difícil aceitar, mas no fundo o casal já sabia da possibilidade, e logo procurou ajuda de todos os profissionais possíveis para o melhor progresso dele e dos pais também.

Por outro lado, embora a rotinha tenha ficado mais intensa, nada mudou para a família, que continuou com a mesma união e amor de sempre e se manteve firme para proporcionar ao filho a melhor família que ele poderia ter. 

Já o João Gabriel, é muito simpático e, dependendo do ambiente, se adapta com facilidade. Porém, segundo o pai, “É uma incógnita, pois nunca sabemos como ele vai reagir quando muda de ambiente. Tentamos sempre deixá-lo o mais confortável possível. Ele tem uma ótima relação com a família e amigos, e sempre que podemos viajamos com ele”, diz Lucas. Ele conta que muitas vezes sofreram preconceito e tentam informar às pessoas preconceituosas, pois percebem que agem assim porque não conhecem o autismo. “Outras são só maldosas mesmo, e com esses não adianta tentar mostrar a realidade, porque só irão se interessar quando ou se um dia necessitarem”.

Quanto ao CETEA, Lucas diz que quando souberam da proposta, ficaram bem empolgados para colocar o filho lá. “E o ambiente escolar tem feito a diferença na sua aprendizagem e na vontade que o João Gabriel tem em ir para a aula. Estamos bem contentes com a parte da escola, porém, imaginávamos um atendimento clínico com terapias intensivas, o que não tem acontecido. Percebemos que a proposta de integrar clínica-escola-família não tem se efetivado, fazendo com que os avanços clínicos do nosso filho não sejam tão significativos como esperávamos. Assim, lutamos para que essa proposta seja colocada em prática, trazendo o melhor para o desenvolvimento de todos os autistas que nela frequentarão”, finaliza.

Fonte: Revista Nossa Senhora Aparecida
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